Agonia
Domingo chuvoso. Reticente. A tarde magoada como um soluço feminino. Euzébio estatelado no sofá. Recém-saído de uma poça de vômito. Enxaqueca terrível. Dor no abdome. Nas pernas. Nos braços. Febre. Disenteria. Dois dias seguidos. Da cama para a rede. Da rede para o vaso. Depois o sofá. O chão da sala. O vaso. A rede. O sofá. Soro caseiro. VapoRub na testa. Nas fontes. Chá disso. Chá daquilo. Nenhum conforto. A mesma agrura.
Daí até o pronto-socorro no meio da noite. Atitude própria. Um táxi na esquina. Hospital público. Sucateado. Um policial à porta. Fila de espera. Falta de leitos. Um velho arquejante sobre a maca. Um garoto com asma. A mãe angustiada. Um travesti esfaqueado. Uma cruz na parede. Um corpo na laje.
A vez de Euzébio. Uma hora depois. O médico atrás do bureau. Cabeça baixa. Óculos fincados no carão rosado:
— Qual o problema?
Explicações... A tosse feia.
— Fumante?
— Não senhor.
— Bebida?
— Também não.
— Nenhum tipo de vício?
— Só o da leitura.
A cabeça erguida pela primeira vez.
— Idade?
— Quarenta e cinco.
— Profissão?
— Sapateiro.
Novamente a surpresa.
— O.k.! — folhinha destacada do bloco. — Duas injeções.
— No músculo?
— Uma só. A outra na veia.
Correria na enfermagem. Fadiga e mau humor. Troca de prontuários.
Euzébio ainda pior no dia seguinte. Dor e náusea. As mãos trêmulas. A boca amargosa. Os olhos piongos e moles. O rosto muito pálido. Lábios igualmente exangues. A cabeça conforme uma caixa de vertigem. Idas e vindas ao bojo. A expectativa de alívio após o lanço esverdinhado sob o chuveiro.
Qual nada. O coração aos pulos. Os bofes quase pela boca. O suor frio sobre a calvície crônica. A confusão das imagens. O delírio. A via-crúcis do corpo. O calvário do espírito.
Cinco da tarde. A casa submersa em quietude. Lá fora a agitação dos pardais entre as árvores. Euzébio às vascas da agonia. Nenhum amparo. A esposa com os pequenos na propriedade rural da mãe. Aniversário desta no sábado. Os filhos e netos em redor da velha. Nada mais justo do que uma visita da filha à mãe distante. Este o seu raciocínio em meio à saudade do próprio genitor. Morto há menos de um ano.
— A bênção... meu pai!
Palavras sem nexo. A febre. O torpor. Euzébio inteiramente só na casa ensombrecida. Como se morto no sofá. Calção de elástico. Barba de cinco dias. A medalhinha de Nossa Senhora entre a penugem grisalha do peito.
Homem simples. Lar modesto. Rigorosamente limpo. Almofadas comuns no piso avermelhado. Paredes branquinhas de cal. Três menções penduradas. Um Cristo de louça. Um bico de luz sobre cada cômodo. A sala. Um quarto. A cozinha. O banheiro. Mobília sem luxo. Fogão-quatro-bocas. Mesa e tamboretes. A geladeira. Um pote. Recibos de água e luz num preguinho da parede.
A estante de livros rente ao janelão com grades. Diminuta. Mas cheia de sonhos e encantos. Rios e mares. Sertões e veredas. Habitada por elementos de toda sorte e linhagem. Uma discreta Via Láctea ao rés do chão. Decerto a maior vaidade do sapateiro Euzébio. Também poeta nas horas de recreio. Amigo de um português caolho e de um certo Bruxo do Cosme Velho.
Seis em ponto. A hora do crepúsculo. Ave-maria na boca das beatas. A penumbra em derredor como um véu de incertezas. A luz do poste coada pelas rótulas da porta. A noite recomposta no tango aéreo dos morcegos.
Euzébio inanimado sobre o sofá. As mãos junto ao ventre. As pernas circunflexas. Uma lágrima desfeita na coroa dos cílios. Os olhos para sempre imóveis.
Na escrivaninha ao canto da sala (juntamente com o par de óculos e a lata de VapoRub) o caderno pautado dos escritos. Uma folha amassada. Um dicionário antigo. Um lápis sem ponta. Um poema incompleto.
Marcos Ferreira de Sousa é mossoroense com textos (conto, romance, poesia e crônica) publicados e premiados em várias partes do país.
Domingo chuvoso. Reticente. A tarde magoada como um soluço feminino. Euzébio estatelado no sofá. Recém-saído de uma poça de vômito. Enxaqueca terrível. Dor no abdome. Nas pernas. Nos braços. Febre. Disenteria. Dois dias seguidos. Da cama para a rede. Da rede para o vaso. Depois o sofá. O chão da sala. O vaso. A rede. O sofá. Soro caseiro. VapoRub na testa. Nas fontes. Chá disso. Chá daquilo. Nenhum conforto. A mesma agrura.
Daí até o pronto-socorro no meio da noite. Atitude própria. Um táxi na esquina. Hospital público. Sucateado. Um policial à porta. Fila de espera. Falta de leitos. Um velho arquejante sobre a maca. Um garoto com asma. A mãe angustiada. Um travesti esfaqueado. Uma cruz na parede. Um corpo na laje.
A vez de Euzébio. Uma hora depois. O médico atrás do bureau. Cabeça baixa. Óculos fincados no carão rosado:
— Qual o problema?
Explicações... A tosse feia.
— Fumante?
— Não senhor.
— Bebida?
— Também não.
— Nenhum tipo de vício?
— Só o da leitura.
A cabeça erguida pela primeira vez.
— Idade?
— Quarenta e cinco.
— Profissão?
— Sapateiro.
Novamente a surpresa.
— O.k.! — folhinha destacada do bloco. — Duas injeções.
— No músculo?
— Uma só. A outra na veia.
Correria na enfermagem. Fadiga e mau humor. Troca de prontuários.
Euzébio ainda pior no dia seguinte. Dor e náusea. As mãos trêmulas. A boca amargosa. Os olhos piongos e moles. O rosto muito pálido. Lábios igualmente exangues. A cabeça conforme uma caixa de vertigem. Idas e vindas ao bojo. A expectativa de alívio após o lanço esverdinhado sob o chuveiro.
Qual nada. O coração aos pulos. Os bofes quase pela boca. O suor frio sobre a calvície crônica. A confusão das imagens. O delírio. A via-crúcis do corpo. O calvário do espírito.
Cinco da tarde. A casa submersa em quietude. Lá fora a agitação dos pardais entre as árvores. Euzébio às vascas da agonia. Nenhum amparo. A esposa com os pequenos na propriedade rural da mãe. Aniversário desta no sábado. Os filhos e netos em redor da velha. Nada mais justo do que uma visita da filha à mãe distante. Este o seu raciocínio em meio à saudade do próprio genitor. Morto há menos de um ano.
— A bênção... meu pai!
Palavras sem nexo. A febre. O torpor. Euzébio inteiramente só na casa ensombrecida. Como se morto no sofá. Calção de elástico. Barba de cinco dias. A medalhinha de Nossa Senhora entre a penugem grisalha do peito.
Homem simples. Lar modesto. Rigorosamente limpo. Almofadas comuns no piso avermelhado. Paredes branquinhas de cal. Três menções penduradas. Um Cristo de louça. Um bico de luz sobre cada cômodo. A sala. Um quarto. A cozinha. O banheiro. Mobília sem luxo. Fogão-quatro-bocas. Mesa e tamboretes. A geladeira. Um pote. Recibos de água e luz num preguinho da parede.
A estante de livros rente ao janelão com grades. Diminuta. Mas cheia de sonhos e encantos. Rios e mares. Sertões e veredas. Habitada por elementos de toda sorte e linhagem. Uma discreta Via Láctea ao rés do chão. Decerto a maior vaidade do sapateiro Euzébio. Também poeta nas horas de recreio. Amigo de um português caolho e de um certo Bruxo do Cosme Velho.
Seis em ponto. A hora do crepúsculo. Ave-maria na boca das beatas. A penumbra em derredor como um véu de incertezas. A luz do poste coada pelas rótulas da porta. A noite recomposta no tango aéreo dos morcegos.
Euzébio inanimado sobre o sofá. As mãos junto ao ventre. As pernas circunflexas. Uma lágrima desfeita na coroa dos cílios. Os olhos para sempre imóveis.
Na escrivaninha ao canto da sala (juntamente com o par de óculos e a lata de VapoRub) o caderno pautado dos escritos. Uma folha amassada. Um dicionário antigo. Um lápis sem ponta. Um poema incompleto.
Marcos Ferreira de Sousa é mossoroense com textos (conto, romance, poesia e crônica) publicados e premiados em várias partes do país.
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